31 de março de 2014

O trem de São Paulo

Vou ter que ir ao Brás. "ai meu deus" - penso. Será que vai estar tão lotado como da outra vez?  - Afinal já são 19hrs, não é mais horário de pico. Cruzo pela transferência entre trens rumo a CPTM e logo me deparo com a confusão. Como sempre muita gente. Empurra, empurra, todos se esmagando. Eu não quero bater em ninguém, mas é impossível. Sem dar cotoveladas para que as pessoas parem de te empurrar você é esmagado. Sigo adiante, alias não sigo. Eles me levam. Nem sinto meus pés no chão, mas acho que estamos subindo a escada. Ao chegar na plataforma, meu coração está muito acelerado. Começo a passar mal. Tem muita gente, não consigo respirar. Olho para o lado, noto 2 soldados da polícia federal fazendo um cordão para que não invadam o vagão preferencial. As pessoas te empurram, o trem chega na plataforma. Ele vem vazio e parte sem caber mais nem uma agulha. Outro trem vem, e parte da mesma forma. Mais outro trem, e outro, e outro, e outro. Agora estou mais perto da porta, já se passaram 30minutos. Meu coração parece que vai parar. Quanto mais me aproximo da porta, mais medo tenho. O vão entre o trem e a plataforma é enorme e cabe uma pessoa como eu facilmente. "e se eu cair?" - é aterrorizante. O trem para na estação, eu ergo meus braços tentando não ser levada pela multidão, afinal quero ver onde estou pisando para não cair entre o trem e a plataforma. As pessoas me empurram tanto que não consigo segurar... o panico já tomou conta de mim mais do que eu poderia suportar, estou tremendo e não consigo se quer levantar o braço. "e se eu cair? e se não me ajudarem? e se o trem sair? não quero morrer, não aqui, não desse jeito". As pessoas empurram os que ficam parados na frente do trem, alguns caem para o lado. Eu me seguro em uma pessoa que está na minha frente. Nem penso sobre o que ela vai pensar de mim, estou com medo demais para pensar nisso. Grudada em outra pessoa consigo ser jogada dentro do trem sem cair no vão tão temido, mas já é tarde demais, estou nervosa demais, não consigo segurar, o choro irrompe sem que eu possa fazer nada quanto a isso. Ali, prensada entre mochilas e sovacos não consigo parar de chorar. Ninguém percebe. Os poucos que percebem fingem que não estão vendo. Mas assim é melhor, é muito humilhante. Por mais que eu pense que não é nada natural aquela situação, para as pessoas é, e eu só posso me sentir uma pessoa boba e mimada que tem medo de morrer em um tumulto no trilho do trem. "meu deus, como sou idiota. Será que sou idiota? será que é isso? devemos nos acostumar a isso?" - a minha estação chega. Antes mesmo de abrir a porta já vejo uma multidão se aglomerando para entrar no trem. "será que consigo sair??" - vou para porta desejando mais do que tudo que não passem por cima de mim. A porta abre, dou um pulo, consigo sair, finalmente... Quando olho para meu redor, me encontro ali parada na plataforma do Brás, o trem lotado, os guardas empurrando com toda a força as portas que não conseguem fechar sozinhas. É muita gente, muita violência, nada de humanidade. A imagem é bem nítida na minha mente e a única coisa que consigo pensar é: "auschwitz não morreu".



17 de março de 2014

A ONU, a paz, o capitalismo, e todo o restante do mundo

Há alguns meses navegando pela internet acessei uma página que trazia um relato grotesco de uma suposta experiência feitas com meninas entre 10 e 12 anos retiradas do leste europeu e transformadas em "bonecas sexuais" para serem vendidas por milhões no mercado negro internacional. Segundo o relato, supostamente essas meninas passavam por diversas cirurgias, tendo partes do seu corpo mutiladas, sua voz e capacidade de reação removidas. Sem sombras de dúvida, algo cruel. No entanto, ninguém vai acreditar que um relato desse nível seja verdadeiro, e não tardou para que pipocasse na rede diversos textos desconstruindo essa estória. 

Sim, aparentemente era falsa. Ou pelo menos eu pensava isso, até ontem.

No conforto do meu sofá liguei a TV para assistir um filme e um título me chamou muito a atenção: "a informante" com Rachel Weisz. Gosto da atriz, ela já fez alguns filmes que eu gostei muito, e pensei que seria uma boa escolha. Apertei o play e de repente, estava em Kiev, na Ucrânia. Seria uma grande ironia se não fosse a realidade. Uma festa, 2 garotas aparentemente sem muita perspectiva de vida, uma vida decadente e miserável pela frente e uma promessa de futuro melhor caso fossem trabalhar em um hotel de luxo fora dos limites da Ucrânia. Uma das garotas resiste a ideia, porém após um conflito com sua mãe, ela abandona seu lar e segue com sua amiga por essa aventura. Depois disso, vivenciamos através do olhar de uma policial americana escalada para trabalhar em uma organização pacifista na Bósnia, os destroços de um país devastado pelos conflitos étnicos, cenário de um dos maiores escândalos de trafico humano promovido por entidades internacionais. E nesse contexto encontramos as 2 garotas do inicio do filme e tantas outras em condições da mais alta degradação humana. 

O filme segue e angustiante narrativa que nos leva a presenciar as mais diversas formas de humilhação. Tortura física, medo, ameaças, morte. E então a associação é inevitável. As garotas que conhecemos durante o filme não são tão diferentes dos relatos macabros que encontramos acerca das "slavery dolls" na deep web. Elas não passaram por nenhuma cirurgia, mas as mutilações são reais. Primeiro lhe tiram a liberdade, ao cruzar as fronteiras e lhes roubar o passaporte. Em seguida a dignidade, fazendo-as acreditar que tem uma divida e precisam pagar para ir embora. Sob esse pretexto, em busca da liberdade elas vendem seus corpos, se sujeitando a todo tipo de coisa degradante, de ficar acorrentada em uma pedra nua por horas, a tolerar diversos homens abusando-as das formas mais indescritíveis. Quando chega a esse ponto, notamos então que sua capacidade de reagir está totalmente dominada pelo medo, elas não falam. Perderam então sua voz. O choque com essa realidade leva a policial Kathy a lutar das mais diversas formas para ajudar essas garotas. Mas quanto mais ela tenta pelos meios legais e investiga profundamente cada caso, mais ela se depara com a corrupção e os limites da forma liberal de organização social. Ingenuamente ela achava estar atrás de uma única pessoa corrupta, mas se depara com um esquema monstruoso, envolvendo desde autoridades diplomáticas, aos soldados dos mais diversos países. Nesse momento ela já está sob a mira dos mais altos escalões do governo americano e da organização pelas nações unidas - a ONU que de forma alguma estavam dispostos a deixar um escândalo como esse vazar. Acompanhamos então sua tentativa de tornar o caso público, uma vez que ela não obteve sucesso mediante a justiça vigente.


Acho que o mais chocante desse filme é que ele é um retrato de um caso bastante real. Kathryn Bolkovac não somente existe, como escreveu 2 livros contando suas experiências acerca da investigação de um esquema de tráfico humano promovido por pessoas ligadas a ONU e a corporação DynCorp. Aliás, vale ressaltar que não foi somente esse escândalo que a DynCorp se envolveu, há diversos relatos de abusos cometidos, inclusive no Iraque e Afeganistão, onde eles mantém um acordo com os EUA para interferir militarmente em prol "da paz" na região. Uma pequena busca no google, ou pesquisa no wikileaks pode deixar qualquer um enojado.

a verdadeira Kathy

No fim da questão, há 2 pontos a se ressaltar acerca da importância do debate suscitado através desse filme. Primeiramente, o quanto nós mulheres somos oprimidas pela sociedade patriarcal. Durante todo o filme nos deparamos com o machismo nos seus mais diversos níveis. Desde a mulher que apanha do marido e todos acham que ela merece, até o caso mais extremo - onde as mulheres viram escravas, como se fossem qualquer outra mercadoria. Assistir esse filme sendo mulher é algo ainda mais difícil, pois é inevitável não se sentir menor diante da situação dada. Ponto importante para debate e luta de toda feminista pela emancipação da mulher, pois o atraso histórico da qual somos reféns - seja por questões econômicas, seja pela reprodução de uma consciência machista - precisa mais que nunca ser superado. É uma questão de sobrevivência. A urgência está dada, o debate, lançado.

O outro ponto que me fez refletir por horas é a relação da nossa forma de organização social e barbárie institucionalizada. Em determinada cena do filme uma funcionária do alto escalão da ONU questiona outro funcionário - também do alto escalão - acerca do modo como a ONU estava tratando a denúncia de Kathy. Ao relembrar o histórico da ONU, ela defende que seja feita justiça, uma vez que a ONU fora formada "sob as cinzas de Auschwitz", no entanto ao ser afrontado, o dirigente revida dizendo que trabalha no mundo real, no mundo onde há corporações privadas, e que quanto a isso, eles não podem fazer nada. A importância da ONU se sobrepunha a qualquer forma de justiça. Mais importante até do que as pessoas que ela deveria proteger.

E aí nos deparamos com uma das mais tristes verdades de nosso tempo. Enquanto o nazismo matou milhões, nosso "liberalismo progressista" prossegue a matar trilhões com a barbárie institucionalizada. Ninguém é responsável por nada, corporações são criadas e destruídas, e como não há um "hitler" para responsabilizar, tudo prossegue no "vocês fingem que não veem e eu finjo que não faço". O jogo favorito da burguesia internacional para acobertar seus crimes. A ONU, a paz, o discurso... as melhores formas dos que "fingem que não veem" lavarem sua consciência humanitária. E assim, a marcha fúnebre prossegue.

E aqui eu finalizo recomendando grandemente que todos assistam esse filme. É uma forma de por a prova se nossa humanidade ainda se mantém viva.